A Lapa e o Samba no novo milênio
- Roberta De Freitas
- 22 de ago. de 2022
- 6 min de leitura

A primeira vez que me recordo de ter ido à Lapa foi com um grupo de amigos da faculdade, para ir jogar sinuca, num velho botequim dominado por um salão com umas dez mesas em fila. Isso deve ter sido por volta de 1994 ou 95. Talvez 96, não lembro ao certo. Mas não passava disso. A Lapa era mais escura, bem menos movimentada e era frequentada por uma velha malandragem decadente, prostitutas e travestis, tudo misturado. Ir à Lapa, para aqueles universitários de classe média, tinha, na verdade, certo gosto de aventura...ou de pesquisa antropológica. Não havia ainda o movimento de samba que tomaria o bairro, poucos anos depois. Naquele momento, poucos da minha geração ouviam samba. Eu mesmo, estava mais ligado no rock clássico, que ouvia desde moleque. Eu, que já tinha visto o show do Paul MacCartney, em 1990, e o Santanna, na segunda edição do Rock in Rio, em 1991, ainda iria ver os Rolling Stones, em 95 e 96, e o show antológico de Robert Plant e Jimmy Page, em 1996, justamente na Praça da Apoteose. De samba, eu ainda ouvia alguma coisa ou outra de Paulinho da Viola e Chico Buarque, e no início do ano, procurava ouvir os sambas enredos das escolas mais tradicionais: Portela, Salgueiro, Beija-Flor, Mocidade, Vila Isabel e a minha querida Estação Primeira de Mangueira.
Nos anos 90, o funk carioca, que nunca foi minha praia, era a nova batida surgida nas favelas. Mais rapidamente do que ocorrera com o samba no início daquele século, o funk conquistou a cidade, o país e o mundo. Havia também a versão brasileira do rap, surgida no berço da cultura do skate e do grafite. Em outras regiões do país, ganharam imensa popularidade também o sertanejo, o pagode paulistano meloso, além das músicas chiclete com conotação sexual explícita como o "É o Tchan". Era isso que mais enchia os bolsos da indústria fonográfica da época, dominava as trilhas sonoras de novelas, os programas de auditório, os bailes nas favelas e as festas em boates e apartamentos de luxo na Zona Sul. O samba nunca saiu totalmente de cena, mas já vinha perdendo espaço desde fins da década de 1970 (o que motivou o João Nogueira e companhia a fundar o Clube do samba*). Entre os mais populares, eram os pagodes mais populares do Zeca Pagodinho e Arlindo Cruz o que o público em geral mais conhecia. Samba se ouvia mais no carnaval. às vezes, no canto das torcidas no velho Maracanã. Não havia, ou pelo menos, eu não tinha notícias de casas noturnas com roda de samba ao vivo. Talvez houvesse algo na velha Estudantina, na Praça Tiradentes, mas eu ainda não conhecia.
(continua depois da ilustração)

Foi nos últimos anos do século XX, por volta de 1998, que eu vim a saber que havia, ali mesmo na Lapa, na Rua da Lavradio número 100, um velho antiquário, chamado Empório 100, que à noite virava uma gafieira. Naquele tempo, eu havia descoberto a obra de Nelson Rodrigues e, de algum modo, através de seus contos, textos dramatúrgicos e romances, e de novas adaptações que reconstituíam a década de 1950, eu fui me reaproximando do samba. Nessa época chegou às minhas mãos um relançamento em CD dos discos de Roberto Silva. Fiquei obcecado pelos volumes um ao quatro dos álbuns "Descendo o morro", só com sambas gravados entre o final da década de 1950 e início de 60. Eu que sempre tive um apreço por um passado que não vivi, (não à toa, fui fazer um mestrado em história) ia redescobrindo um Rio de Janeiro tradicional que vinha renascendo no Rio de Janeiro daquele fim de milênio. Quando fui ao Empório 100 pela primeira vez, conheci um conjunto musical que contava com uns dez músicos, que além dos instrumentos de cordas e percussão, contava ainda, com belo naipe de metais, como tuba, trombone, sax, clarineta, flauta e trompete. O repertório? Quase todo inspirado nas faixas dos discos de Roberta Silva, que àquela altura, eu já sabia de cor, hoje quase tão manjadas como na época do seu lançamento (Indecisão, Risoleta, Falsa baiana, Rugas, Cabelos brancos, A mulher de seu libório, Seu Oscar, Ai que saudades da Amélia, Agora é cinza, A voz do morro, Se acaso você chegasse, Notícia, Jornal da morte, entre outras).
Nos anos seguintes, novas casas abriram na Lapa, e fui me tornando habitué no velho bairro boêmio. A lapa estava voltando a ser a Lapa, como dizia o velho samba dos tempos em que o Rio era a Capital Federal. Foi nessa época que surgiu o Semente, colado aos arcos, na subida para a Rua Joaquim Silva, berço da carreira de Teresa Cristina e do grupo Semente, que herdou o nome da casa de espetáculos onde se apresentava. Foi lá que gravaram o clipe da música "Calo de estimação" com Teresa Cristina e Pedro Miranda, cuja sequencia de imagens me inspirou a criar as ilustrações que apresento nessa postagem. Já nos anos 2000 surgiu o Carioca da Gema, no coração da Lapa, na esquina da Mem de Sá com a Lavradio, em frente ao Bar Brasil, choperia centenária, onde eventualmente íamos abrir os trabalhos, esperando a abertura das casas de shows. A saideira era no não menos tradicional Nova Capela, que ficava aberto madrugada adentro. Na Riachuelo ainda havia os Democráticos, no sobrado de um casarão histórico, onde costumava se apresentar o saudoso Eduardo Gallotti com o o conjunto Anjos da Lua, resgatando e apresentando às novas gerações, vários sambas de outras épocas.
(continua depois da ilustração)

Aliás, foi o Gallotti, com quem eu volta e meia esbarrava, na Cobal do Humaitá, um dos principais responsáveis por esse revival do samba, que dura até hoje, mas foi só quando ele faleceu, este ano, que eu fiquei sabendo disso, através das matérias nos jornais. Para além do circuito da Lapa, ainda frequentei muito o Centro Cultural Carioca, ali na Praça Tiradentes, atrás do Teatro João Caetano, e mais longe, ali perto da Pedra do Sal, que só vim a conhecer depois, tinha também o Trapiche da Gamboa, onde conheci o conjunto Galocantô e também vi os já mencionados Anjos da Lua, comandado pelo Gallotti. E durante o carnaval, a prefeitura passou a montar um palco em na praça em frente aos Arcos da Lapa, onde havia uma espécie de anfiteatro. Ali era uma constelação de compositores da velha guarda como Monarco, Walter Alfaiate, Nelson Sargento, Xangô da Mangueira, Luís Carlos da Vila, além do próprio Gallotti, que não era da velha guarda, mas era um dos grandes responsáveis pela revitalização do bairro. Anos depois, descobri o Vaca Atolada, um botequim "pé sujo" na Gomes Freire, que funcionava no térreo de um casarão centenário, que oferecia rodas de samba umas três ou quatro vezes por semana. Aos sábados lotava. Foi lá que conheci o Terreiro de Breque, e fiz amizade com o Zeh Gustavo, anos depois. A Lapa virou atração turística obrigatória e, com isso, desgastou um tanto, a receita do sucesso e, mais recentemente, andou perdendo novamente daquela época. Na primeira década do novo milênio, surgiria na Lavradio, quase chegando na Praça Tiradentes, uma casa de espetáculos enorme, que também tal como o Empório 100, que funcionou na mesma rua. Era um antiquário de dia, e casa de shows à noite, com a diferença que era mais elitizada, cardápio de drinks e petiscos assinado por chefs renomados, altos preços. Ao longo desta década, vários botequins passaram entrar na onda, a investir em apresentação de rodas de samba, muitas delas caça-turistas, a decibéis insalubres, qualidade duvidosa e repertório óbvio. Isso passa. A pandemia acabou fechando algumas casas, que aos poucos vão reabrindo e iniciando, talvez, um novo ciclo. O samba, por sua vez, não perdeu espaço, nem com esse desgaste da Lapa, nem com o baque da Indústria fonográfica que teve que se renovar, após o sucesso da era dos serviços de streaming. Acredito que veio pra ficar. "Agoniza, mas não morre" ficou no passado. Aquela "nova geração", já não tão nova assim, recebeu o anel de bamba e não vai deixar o samba morrer. Quem viver, verá.
Para ver o clipe de "Calo de Estimação", gravado no Semente:
*Para saber mais, leia a postagem que fiz sobre o Clube do Samba aqui no ilustresamba.com





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