Ilustrações históricas do samba
- Roberta De Freitas
- 12 de jul. de 2022
- 7 min de leitura






Para além da minha carreira como ilustrador, tenho também uma trajetória na carreira acadêmica, onde me dediquei a pesquisar a história da ilustração no Brasil. Desde a especialização em história da arte no Brasil, pela PUC-RJ, quando focalizei a obra do Roberto Rodrigues na revista ParaTodos no final da década de 1920, resultou numa pesquisa incipiente, mas elaborada com paixão. No mestrado em história comparada, pesquisei as charges de futebol publicadas no Jornal dos Sports, comparando os contextos culturais sociais e políticos expressos na obra de Lorenzo Molas, na década de 1940, e de Henfil, quase trinta anos depois. Já no doutorado, cuja tese defendi no ano passado, me dediquei a pesquisar nas revistas "O Malho" e "Careta", as representações caricaturais do povo brasileiro e dos símbolos de identidade nacional, em processo de construção e consolidação.
Foi aí que me dei conta de uma relativa escassez de menções à música popular brasileira nas revistas ilustradas dessas primeiras três décadas do século XX. Justamente na época em que o gênero musical mais popular do país estava sentado gestado nos morros da cidade, e também na região que se tornaria conhecida como Pequena África, na Cidade Nova. A resposta para esse silêncio está certamente num preconceito dominante na sociedade carioca em relação a tudo o que era popular e a toda forma de expressão cultural de raízes africanas. Preconceito que se mostrava explícito e desavergonhado, sem a menor preocupação de ser dissimulado. A música de raízes africanas era considerada bárbara e primitiva. Consideravam vergonhoso compará-la a música erudita orquestral europeia. Quando em 1914, a caricaturista e então primeira dama Nair de Tefé executou o maxixe Corta-jaca em uma recepção no Palácio do Catete, o gesto mereceu o repúdio escandalizado de Rui Barbosa.
Por mais que cartunistas como Raul Pederneiras e Kalixto fossem figuras boêmias inseridas nessas rodas e em todo movimento cultural que agitava a Cidade Nova, é preciso considerar que as revistas ilustradas por mais que fossem populares, e consumidas por todas as classes sociais, eram produzidas e dirigidas à elite econômica e cultural da capital da República. Mesmo as representações ilustradas do carnaval eram prioritariamente o carnaval dos bailes de máscaras, dos pierrôs, arlequins e colombinas que apareciam nas páginas dessas revistas. Os cordões, mais populares, quando muito eram lembrados para a sátira política, geralmente para ridicularizar figuras públicas e a figura alegórica da política, invariavelmente representada por uma senhora decrépita, por vezes desdentada, descabelada, de movimentos brutos. Não havia muita menção ao samba ou a batucada, nem mesmo durante os três dias de folia.
O recorte da minha tese se encerrava com o fim da "República Café com Leite", como ficou popularmente conhecida. Essa delimitação parecia fechar um ciclo histórico e me trouxe uma série de dúvidas sobre que mudanças o paradigma da modernidade viriam a provocar nessas representações. Na década de 1930 o processo de modernização do país atingiria o setor industrial e novas relações de trabalho. A era Vargas iria aderir às novas propostas formuladas pelo moderno pensamento social brasileiro, a partir do impacto de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, da valorização da cultura mestiça como um diferencial positivo da cultura brasileira, da qual deveríamos ter orgulho. Além de tudo, a expansão da indústria fonográfica e do rádio iriam ser essenciais para disseminar o samba, levando-o a todos os lares do país, e transformando-o em produto de exportação. Já no final da década, o samba passava a ser representado como um elemento crucial de diferenciação da identidade nacional. É por isso que eu decidi dar continuidade a pesquisa, de forma autônoma, para investigar o efeito dessas transformações nas páginas dessas revistas ilustradas. É importante ter em conta que, durante o período que eu havia delimitado para a minha tese, a revista estava se tornando o veículo de comunicação de massa por excelência. Era um mercado dominado por grandes empresas com tiragens que giravam em torno de 40 mil exemplares, mas lidos por um número muito maior de pessoas, já que era facilmente encontrado em engraxates, consultórios, cafés e barbearias, à disposição dos fregueses. O rádio, embora tenha sido inaugurado por ocasião das celebrações do centenário da Independência, em 1922, só viveria seu período de esplendor a partir da década de 1930, quando passou a ser permitida a veiculação de informes publicitários.
As ilustrações que selecionei aqui são extremamente representativas deste longo processo. Vamos, então, discutir rapidamente cada uma delas. A primeira, lamentavelmente eu só descobri depois de terminar a tese. Como eu não havia pesquisado a revista Fon-fon que, junto com a Careta e O Malho, foi uma das mais populares e longevas da primeira metade do século XX, só fui conhecer essa riquíssima referência no livro "Modernismo em preto e branco", de Rafael Cardoso, historiador das artes visuais. Uma explícita referência ao samba, mostra o quanto o nome já circulava na cidade, seis anos antes de Donga e Mauro de Almeida registrarem assim, o samba "Pelo Telefone" na Biblioteca Nacional, sucesso absoluto no carnaval do ano seguinte. O desenho de Pederneiras sugere mais ritmo e dança do que melodia. Nota-se que os instrumentos que aparecem na imagem são todos de percussão e o personagem que aparece em primeiro plano, protagonista dos versos de Kalixto, ensaia um passo de dança.
A ilustração seguinte, publicada n'O Malho em 1906, de Augusto Rocha foi publicada em homenagem ao 18º aniversário da Lei Áurea. A abolição da escravatura na constituição do Brasil era extremamente recente e era um gancho para representações das expressões artísticas, ainda muito mais associadas à mestiçagem do que à cultura brasileira. O texto é obviamente problemático, tanto por enaltecer o papel da Princesa Isabel como a grande redentora, ignorando o papel dos próprios negros na luta abolicionista, quanto por carregar nos erros de ortografia e concordância gramatical, estereótipo do linguajar popular, usualmente associado à fala do negro, nunca ao branco, mesmo quando este se tratava de um personagem miserável, morador de rua.
Muito se tem falado ultimamente do caráter racista das caricaturas de J.Carlos e, de fato, encontrei um número significativo de cartuns em que o negro é representado de forma pejorativa, associado à ignorância e à marginalidade. A imagem que trago aqui, porém, é mais ambígua que as demais. Por se tratar de uma caracterização de J.Carlos, é previsível que as caracterizações dos negros sejam estereotipadas, com bocas exageradamente carnudas e vermelhas que muito remetem às tenebrosas "black-faces" usadas por atores brancos para encenações teatrais no Brasil e na América, que ridicularizavam os negros. Mas os negros que aqui aparecem estão mais bem trajados que a maioria de suas representações. Difícil precisar se ele queria representar uma roda de choro ou de samba ou mesmo se isso teria alguma relevância naquela época. Era uma roda de negros, "poetas de chocolate" como ele chama. Poesia ou deboche? J.Carlos enaltece ou ri da roda de músicos negros? Talvez os dois.
Já no traço de Luis Sá, aquele mesmo que consagrou os bonequinhos usados por críticos cinematográficos na cotação dos filmes, é o samba de terreiro que aparece. Novamente, vemos apenas instrumentos de percussão e a maioria dos personagens, todos negros, apenas dançam. A ilustração é identificada por "Batucada", mas acreditamos que publicada na década de 1930, não seria outro o gênero musical. Pela simplicidade da casa, o chão de pedras, as casas que aparecem ao fundo, tudo indica tratar-se de uma favela. No livro "Na roda de samba" de 1933, o jornalista Vagalume afirma que oi samba nascia nos morros, na favela, nas rodas de terreiro. E morria na indústria fonográfica, onde perdia sua autenticidade.
Já nas duas últimas ilustrações de J.Carlos, publicada na revista Careta, em 1937 e 1938, respectivamente, o que se revela é uma evidência que marcava um novo momento da história do samba. Na primeira,. vemos um conjunto musical formado por estrangeiros em caracterizações estereotipadas é regido por um brasileiro, identificado pela camisa listrada e o chapéu de palhinha, também usado de improviso como instrumento de percussão. A representação do brasileiro ganhava nova conotação. Era uma representação de forte teor simbólico do samba e da malandragem que ia aos poucos ocupando o lugar que já havia sido do Jeca-Tatu, do Zé Povo e do Indígena. Mais significativo ainda é o título, "Samba não é varsa!" e a fala do personagem, reclamando com os músicos que não conseguiam entrar no ritmo do samba: "Cês não dão mêmo para nada. Aqui as coisas é diferente. Ou puxa certo ou então, dá o fora." Na última, vemos uma caracterização que nos remete diretamente à Carmem Miranda e o Bando da lua, assistidos pelo Tio Sam. Era o sucesso de Carmem em Hollywood, a consagração do samba como espetáculo para estrangeiro aplaudir. A legenda entrega a percepção crítica de J.Carlos denunciando a continuação da situação submissa de dependência econômica do Brasil frente aos Estados Unidos. O verso "Implorar só a Deus" causa constrangimento no sambista que se desculpa com o "Tio rico" Sam, a inclusão da música no repertório. A crítica de J.Carlos é que continuávamos de joelhos para as potências do norte. O período marcava o início da política de boa vizinhança (o filme Alô, amigos, em que a Disney apresentaria ao mundo o Zé Carioca seria lançado no Brasil em 1942) e culminava com a entrada do Brasil na guerra pelo lado das forças aliadas.
Creio que até este momento e ainda alguns anos para frente, ainda teremos muitas representações estereotipadas do samba, muitos clichês que caracterizavam este samba industrializado que era um sucesso popular no Brasil e no exterior. As minhas pesquisas mais recentes parecem mesmo comprovar minhas suspeitas de que o samba passa a aparecer cada vez mais e já não pareciam ser motivo de vergonha, mas até de orgulho.
Mais alguns anos à frente, teremos alguns nomes da ilustração brasileira se consolidando em torno do samba. Um deles é o do mais carioca dos estrangeiros que por aqui estabeleceram residência. Seu nome é Lan e ainda vamos falar muito dele por aqui.
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