Raízes do samba carioca
- Roberta De Freitas
- 4 de ago. de 2022
- 8 min de leitura












Já em 1933, foram lançados os dois primeiros livros (que se tem notícia aqui) sobre as a história e as origens do samba no Rio de Janeiro. Um trazia o título simplesmente de "Samba", escrito por Orestes Barbosa, que ainda iria produzir outras obras sobre a música popular. O outro era "Na roda de samba", autoria do jornalista Francisco Guimarães, o Vagalume, repórter da noite carioca, que assinava a coluna "Echos Noturnos" (crônicas de suas rondas noturnas) na Gazeta de Notícias, nos primeiros anos do século XX. Vagalume era inserido e respeitado nos redutos musicais da Cidade Nova e nos morros da cidade. Logo de partida, ele já situa o leitor: "Onde nasce o samba? Lá no alto do morro - no coração de um homem rude, cuja musa embrutecida não encontra tropeços para cantar as suas alegrias e as suas mágoas em versos mal alinhavados, que traduzem o sentir de um poeta que não sabe a metrificação nem tem relações com o dicionário.(...) Onde morre o samba? No esquecimento, no abandono a que é condenado pelos sambistas que se prezam, quando ele passa da boca da gente da roda, para o disco da vitrola. Quando ele passa a ser artigo industrial - para satisfazer a ganância dos editores e dos autores de produções dos outros* " Natural que pareça curiosa a afirmação purista de Vagalume, a olhos que leem esse texto em 2022, e tem a dimensão da trajetória e do que significou a indústria fonográfica para a ampla aceitação, expansão e consolidação do samba, a partir do final da década de 1920.
Já no mais recente livro "Samba de sambar do Estácio: de 1928 a1931" (2014), o pesquisador Humberto Franceschi (oriundo de uma família tradicional repleta de intelectuais, diplomatas, poetas e músicos como Vinicius de Moraes, Mello Moraes Filho, entre outros) investiga o surgimento da turma do Estácio e reflete sobre o impacto de um novo tipo de samba, mais próximo do que conhecemos hoje, que acabaria prevalecendo na indústria fonográfica, na rádio e nos salões de todas os círculos sociais do Rio de Janeiro, então capital da República. Franceschi observa que o que se ouvia nas casas das baianas, como a Tia Ciata, eram músicas do nordeste, especialmente da Bahia e Pernambuco e "improvisos do momento", como ele se refere. "Nada tinha de samba, como hoje o conhecemos. Eram colchas de retalhos de motivos folclóricos." (FRANCESCHI, 2014, p.31) Uma dessas composições que o autor considera uma "colcha de retalhos" foi justamente a música "Pelo Telefone" registrado em 1916 pelo compositor Ernesto Maria dos Santos, mais conhecido como Donga e pelo jornalista Mauro de Almeida. Certamente o mais contestados dos "sambas", a qual se afirmam tratar de maxixe.
Vagalume explica que a música e a letra registrada na Biblioteca Nacional eram arranjo de Donga e Mauro de Almeida (o Perú dos pés-frios) de uma música "pescada (sic)" na casa da Tia Ciata, à Rua Visconde de Itaúna, n.117. [Permitam-me um breve parêntesis, a título de curiosidade. O refrão: "O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar/ Que na Carioca tem uma roleta para se jogar". Três anos depois que o chefe de polícia Belizário Távora determinou a proibição dos jogos de azar, repórteres do jornal A Noite montaram uma roleta no Largo da Carioca, em frente à redação do jornal e documentaram a jogatina, para desmoralizar a autoridade de Aureliano Leal, sucessor de Belizário, que tinha declarada aversão a todo tipo de manifestações populares.]
Já o sambista e pesquisador Nei Lopes esboça uma linha evolutiva, "que vem do batuque dos povos bantos de Angola e do Congo até o partido-alto, vamos encontrar: a) primeiro, o lundu bailado, dando origem ao lundu puramente canção dos salões imperiais, aos sambas rurais da Bahia e de São Paulo, a um lundu campestre, ainda dançado, e a outras manifestações; b) depois, todas essas expressões (com a chula do samba baiano ganhando status de manifestação autônoma) confluindo para o que chamamos de samba da "Pequena África da Praça Onze", onde o núcleo irradiador foi a Casa da Tia Ciata; c) depois ainda, o samba amaxixado da Pequena África, dando origem ao samba do morro; d) finalmente, esse samba do morro se dicotomizando em samba urbano (a partir do Estácio) próprio para ser cantado e dançado em roda". (LOPES, 1992, p. 47). Nei Lopes observa ainda, a divisão musical geográfica nas festas das casas das tias baianas, na sala, um conjunto musical composto essencialmente por flauta, cavaquinho e violão, executava o choro. O samba rolava no quintal, batido na palma da mão, no pandeiro e no prato e faca.
Para Fransceschi, "a novidade trazida do Estácio com o samba de sambar, no dizer de Ismael Silva, abalou profundamente os principais compositores da década de 1920 , particularmente Sinhô, Donga e Caninha." ( FRANCESCHI, 2014, p.51). Uma evidência dessa afirmação foi quando lançaram dois compactos (uma música de cada lado), com as de Sinhô no lado A, "Não quero saber mais dela" e "Bobalhão", e "Me faz carinhos" de Ismael Silva, e "Malandragem" de Alcebíades Barcellos (Bide), respectivamente, no lado B de cada uma, fazendo um sucesso muito maior do que as do lado A. Era um sinal dos tempos e abriria caminho para outros na mesma pegada.
Para o pesquisador, era uma outra melodia, a que ele atribui maior pureza: "seu andamento, diverso, sua cadência, muito mais marcada. O Estácio só fez samba, e muito bom. Jamais se poderá dar a um samba do Estácio, como "você chorou" do Brancura, ou "O que será de mim" do Ismael Silva, o andamento dos sambas de Sinhô e Caninha" (Ibidem) . Se o leitor quiser conferir, vá à lista que fiz no spotfy (link) e ouça "Gosto que me enrosco" e "Jura" de Sinhô. Ou mesmo a própria "Pelo telefone" não menos famosa "Patrão prenda seu gado" de Pixinguinha, Donga e João da Baiana, gravada por Martinho da Vila. Depois ouça "Vai mesmo" de Heitor dos Prazeres e regravada na década de 1970 pela velha Guarda da Portela (não confundir com Vai, mas vai mesmo, de Ataulfo Alves), ou "O que será de mim?" de Ismael Silva. As duas últimas, são recomendações do autor. A elas acrescento ainda, outras pérolas como "Pra me livrar do mal", "Se você jurar" e "Com a vida que pediste a Deus", todas do Ismael.
Vale lembrar que ainda em 1922, o conjunto musical Os Oito Batutas, que começaram se apresentando no Cine Palais antes das sessões de cinema, passou a se apresentar no então cabaré Assírio, no sub-solo do Theatro Municipal. Com nomes como Pixinguinha, Donga, e tendo contado com integrantes como João pernambucano e Luiz Americano, o grupo levaria a música brasileira para Paris, onde fariam enorme sucesso com o samba amaxixado da época. Era o primeiro grupo musical de negros a apresentar-se no exterior, causando repúdio à sociedade conservadora e racista da época. André Diniz escreve que "na imprensa carioca, a viagem foi vista como degradante para a imagem da sociedade brasileira no âmbito internacional". Coube a Benjamim Costallat, que Diniz descreve como sendo um "observador arguto do frenesi urbano carioca", fazer a defesa dos Batutas (e que defesa!): "Foi um verdadeiro escândalo, quando, há uns quatro anos, os "oito batutas" apareceram. Eram músicos brasileiros que vinham cantar nossas coisas brasileiras! Isso em plena Avenida Central, em pleno almofadismo, no meio desses meninos anêmicos, frequentadores de cabarets que só falam francês e só dançam tango argentino! No meio do internacionalismo dos costureiros franceses, das livrarias italianas, das sorveterias espanholas, dos automóveis americanos, das mulheres polacas, do snobismo cosmopolita e imbecil! Não faltam censuras aos modestos 'oito batutas'. Aos heroicos 'oito batutas' que pretendiam num cinema da avenida, cantar a verdadeira terra brasileira, através de sua música popular, sinceramente, sem artifícios nem cabotinismo, ao som espontâneo dos seus violões e dos seus cavaquinhos." (COSTALLAT APUD DINIZ, 2006, p.36)
De acordo com Franceschi, o Estácio trouxe novo conceito para a música urbana carioca. "Entre 1920 e 1926, além do começo da invasão de músicas estrangeiras, o que existia como música popular era samba de partido-alto, samba amaxixado, embolada do Norte, música batucada para blocos de carnaval e variadas jazz-bands tocando todos os gêneros. A mais popular mesmo era a roda de partido-alto com estribilho acompanhado de palmas e, às vezes, de pandeiro e cavaquinho, e, mais raramente, prato e faca, cultivando o estilo original dos baianos presos a motivos folclóricos. O ritmo é que valia, a letra, geralmente improvisada, não contava". O autor explica que seria a partir de 1926, que a música dos blocos do Estácio para os desfiles de carnaval, iriam propor novas formas de expressão, "com notas mais longas e andamento mais rápido, cadência marcada, muito além da simples ilustração de palmas, usada até então, e ganhou versos que falavam dos problemas do dia a dia. Era a expressão da nova realidade social que se formava nas camadas mais baixas da população" (Ibidem, p. 53).
Se você procurar por "Turma do Estácio" no google, logo encontrará uma descrição objetiva, mas esclarecedora sobre quem eram e o que representou seu legado: "Em 1928, Ismael Silva, Bide, Mestre Marçal, Bucy Moreira, Baiaco, Brancura , Manos Rubem e Edgar fundariam no Morro de São Carlos, a escola Deixa Falar, considerada a primeira escola de samba. Este grupo costumava frequentar e fazer rodas de samba nos botequins Apolo e Cumpadre, na subida do Morro de São Carlos. Estas rodas atraíram gente de várias partes do Rio, entre sambistas de Benfica, Madureira, Providência e Gamboa, costumavam avançara a madrugada e muitas vezes não eram toleradas pela polícia". (ver Wikipedia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Turma_do_Est%C3%A1cio)". A eles se juntaram Paulo da Portela, Alcides Malandro Histórico, todos da azul e branco, Cartola, Carlos Cachaça e posteriormente, Geraldo Pereira e Nelson Cavaquinho, da verde e rosa, além de Noel Rosa de Vila Isabel, e Ancieto, do Império.
Vale observar que até a década de 1930, por conta da perseguição policial, as rodas de samba estavam mais restritas aos morros, aos terreiros e à Festa da Penha. Foi a partir das rodas no Largo do Estácio que o samba foi se difundindo pela cidade, catapultado ainda pelo rádio e as gravadoras. O livro de Franceschi vinha com um CD encartado e uma lista de gravações antigas, muitas desconhecidas do grande público, de vários compositores do Estácio, acrescido vez ou outra do nome de Francisco Alves. Quem quiser pode ouvir uma lista no Spotfy de Ilustre Samba, para "ilustrar" musicalmente a postagem.
Quem quiser ouvir a Playlist, buscar por "Ilustre Samba origens" ou clicar no link abaixo.
*grifo do autor.
Referências Bibliográficas
Livros
DINIZ, André. "Almanaque do samba". Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
FRANCESCHI, Humberto. Samba de sambar do Estácio: de 1928 a 1931." São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2014.
GUIMARÃES, Francisco (Vagalume). Na roda do samba. 2 ed. Rio de Janeiro: Funarte, 1978.
LOPES, Nei. O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical. Rio de Janeiro: Pallas, 1992.
Internet
OITO Batutas. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo636293/oito-batutas. Acesso em: 03 de agosto de 2022. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
Wikipedia (verbete: Turma do Estácio). Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Turma_do_Est%C3%A1cio)" . Acesso em 03 de agosto de 2022.
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