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Ilustres sambas de Chico Buarque

 Em 79 anos de vida, Chico Buarque de Holanda nos legou seis décadas de músicas, livros, peças teatrais que, acredito poder afirmar, constituem um dos mais valiosos tesouros de toda a produção artística e cultural brasileira. O merecido prêmio Camões, recebido este ano, é sem dúvida alguma, uma consagração relevante em sua carreira, mas para todos nós, ouvintes, leitores, espectadores, admiradores de seu talento, não é surpresa nenhuma, mas a mera constatação do óbvio. Filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda, que é um dos mais importantes pensadores e intérpretes do Brasil na história do país, podemos dizer que esta valiosa herança intelectual se reflete no profundo conhecimento histórico, sociológico e literário que sedimenta sua obra.

Sua carreira musical é mais associada à Música Popular Brasileira, de modo geral, do que, mais especificamente ao samba, até porque temos em seu vasto repertório, exemplos dos mais diferentes gêneros e não só brasileiros, que passam pelo choro, bossa nova, tango, fado, baião, valsa ou blues. Mas foi no samba que ele começou a carreira e apareceu para o Brasil e para o mundo.

Já no primeiro disco, enumera grandes sucessos. O maior deles foi, sem dúvida, A Banda, que estava mais pra marchinha do que pra samba, e foi vencedora do Festival da Canção de 1966, empatada com “Disparada” de Jair Rodrigues, por elegante imposição do próprio Chico, que a considerava melhor que a sua e não aceitou levar o prêmio sozinho. Completavam o disco “Tem mais samba”, “A Rita”, “Ela e sua Janela”, “Madalena foi pro mar”, “Pedro pedreiro”, “Amanhã ninguém sabe”, “Olê Olá”, disco só de sambas. No disco seguinte, ele já experimenta outros ritmos, mas emplaca outro sucesso muito popular que até hoje faz parte do repertório de seus shows: Quem te viu, quem te vê. E a plateia, ávida espera pelo trecho “Hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria, quero que você assista na mais fina companhia. Se você sentir saudades, por favor, não dê na vestida, bate palma com vontade, faz de conta que é turista” para aplaudir entusiasmada antes de acabar a música. No mesmo disco, temos outras preciosidades menos populares como “Fica”, “Logo eu” e “Será que Cristina volta?”

No terceiro disco, a música “Roda Viva”, havia conquistado o terceiro lugar no Festival da Música Popular de 1967. Cinquenta e cinco anos depois, um episódio tosco trouxe de volta a música de Chico para o noticiário, quando um dos filhos do miliciano que presidia este país (nem pai nem filho merecem ser mencionados aqui) usou a música sem autorização (que jamais teria) em uma postagem em que protestava contra uma suposta “censura” do STF contra as Fake News. Como se não bastasse tamanho absurdo, quando Chico entra com um processo exigindo a retirada da música das postagens, além de justa indenização por danos morais, a juíza Monica Ribeiro Teixeira chegou a negar o pedido, alegando a falta de "documento hábil a comprovar os direitos autorais do requerente sobre a canção 'Roda Viva'".


Mas se Chico experimentou diversos gêneros, já começando a partir de seu segundo disco, na verdade ele nunca deixou de fazer samba. Em seu quarto disco, Ilmo sr. Cyro Monteiro é uma pérola entre as suas menos conhecidas, em que ele agradece e rejeita de forma bem-humorada o presente gaiato que o rubro-negro Cyro Monteiro deu à sua primeira filha, a atriz Silvia Buarque: uma camisa do Flamengo. O samba marcado na caixinha de fósforo, especialidade do amigo, diz que um pano rubro-negro é presente de grego, não de um bom irmão. Para depois, transformar, cor por cor, a camisa do rival em um sagrado manto tricolor.


No mesmo ano, Chico lançou aquele que é um dos seus sambas mais conhecidos e importantes. “Hoje você é quem manda, falou á falado. Não tem discussão. A minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão.” Com versos que, interpretados mais literalmente, podiam se referir a uma briga de casal, Chico driblou a censura e fez um gol de placa. A música foi inicialmente liberada e lançada em um compacto, que chegou a vender 100 mil cópias e não parava de tocar nas rádios. A bobeada da censura causou grande embaraço ao regime. Interrogado, Chico confirmou a versão da mulher mandona, mas não adiantou. Seu nome ficou marcado e a censura já não deixava passar nenhuma música assinada por ele, qualquer que fosse o tema.


Foi aí que ele teve a sacada de inventar um pseudônimo. Funcionou. Como Julinho da Adelaide lançou o samba “Acorda, amor”. O título engana. Desta vez, era de fato uma conversa entre marido e mulher, mas longe de ser uma discussão causal. Na letra, percebemos que o marido visava a esposa que a polícia vinha atrás dele: “Acorda amor, eu tive um pesadelo agora/ Sonhei que tinha gente lá fora, batendo no portão/ que aflição/ São os homens/ numa muito escura viatura? Minha Nossa, Santa Criatura/ Chame ladrão/ Chame ladrão”...e mais adiante, uma clara menção aos presos políticos torturados, mortos e desaparecidos nos porões da ditadura: “se eu demorar uns meses, cnvém às vezes você sofrer/ Mas depois de um ano e eu não vindo/ Ponha a roupa de domingo/ E pode me esquecer”. Como Julinho, fez também um samba-rock ao estilo de Jorge Ben, chamado “Jorge Maravilha”: “Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”...reza a lenda que a inspiração veio quando um general veio pedir a Chico um autógrafo para a filha, fã do cantor e compositor. Em 1974, o jornal A Última Hora chegou a publicar uma entrevista com Julinho, ajudando a dar credibilidade ao personagem criado por Chico, que descrevia o “colega” como um compositor dos morros cariocas que saía das páginas policiais para o caderno cultural. A ideia foi de Mário Prata, que entrevistou o Chico, na casa de seu pai, Sérgio. como se ele fosse o Julinho. Já no álbum Meus caros amigos, o sensacional “Vai trabalhar, vagabundo” debochava da expressão, ao expor as condições precárias do trabalhador: “Deus permite a todo mundo/ Uma loucura”, e mais adiante: “Não perde mais um momento perde a razão” ou mesmo “Vai te enforcar, Vai te entregar, Vai te estragar Vai trabalhar”. E tudo para que? Veja o desfecho: “Vai terminar moribundo Com um pouco de paciência No fim da fila do fundo Da previdência. Parte tranquilo, ó irmão/ descansa na paz de Deus/ Deixaste casa e pensão só para os teus.”


Com o início do processo de abertura política, Apesar de você foi liberada novamente e entrou para um dos mais icônicos álbuns de Chico, o de 1978, aquele em que Chico aparece na capa na frente de samambaias. No final da ditadura, Chico nos apresenta “Vai passar”, um samba animado, com jeito de samba-enredo passava em revista um histórico de dominação no país ( ), mas trazendo na última estrofe, versos esperançosos, com o fim da ditadura: “Meu Deus, vem olhar/ Vem ver de perto uma cidade a cantar/ A evolução da liberdade/ Até o dia clarear”.


Em 1998, sua vida e obra vira enredo da Mangueira, sua escola de coração. Com o belo samba de Nelson Dalla Rosa, Vila Boas, Carlinhos das Camisas e Nelson Csipai, averde-rosa fez um desfile deslumbrante, a altura do homenageado e abocanhou um título (empatado com a Beija-Flor) que a escola aguardava havia 11 anos (abaixo, o link para ver o desfile na íntegra)


Há pouco mais de um ano, em 16 de junho de 2022, no final do governo mais hediondo desde o fim da ditadura, Chico lançava um single nas plataformas digitais, que se tornou um sucesso e mereceu uma nova turnê homônima. “Que tal um samba?” é mais do que uma sugestão. É um desafogo, um descarrego, pra espantar o tempo feio, para remediar estrago, esconjurar a ignorância, desmantelar a força bruta, depois de tanta estupidez, tanta mentira, tanta mutreta, tanta derrota, tanta demência, e uma dor filha da puta... Que tal um samba é uma proposta de resistência, de exorcismo do fascismo e dos valores nefastos da extrema-direita, contra a qual Chico sempre lutou. Em seus livros, em sua música, em seus sambas.


Links:


Ilustres Sambas de Chico (playlist especial Ilustre Samba no Spotfy):


Vídeo-clipe de "Vai Passar":


Desfile campeão da Mangueira de 1998, em homenagem ao Chico.


Filho do historiador Sérgio Buarque, Chico sempre conviveu com a nata da intelectualidade cultural e artística do Brasil.
Filho do historiador Sérgio Buarque, Chico sempre conviveu com a nata da intelectualidade cultural e artística do Brasil.
Nara Leão e Chico no Festival Internacional da Canção, em 1966. A Banda dividiu com "Disparada", o primeiro lugar.
Nara Leão e Chico no Festival Internacional da Canção, em 1966. A Banda dividiu com "Disparada", o primeiro lugar.
Releitura da capa antológica do primeiro disco, que virou meme nas redes sociais. A gravadora preferia a foto do Chico sorrindo e o Chico, que queria se impor como um compositor sério, preferia a outra. No final, decidiram agradar aos dois.
Releitura da capa antológica do primeiro disco, que virou meme nas redes sociais. A gravadora preferia a foto do Chico sorrindo e o Chico, que queria se impor como um compositor sério, preferia a outra. No final, decidiram agradar aos dois.
Chico com o MPB4 interpreta Roda Viva, no Festival de Música Popular Brasileira, em 1967.
Chico com o MPB4 interpreta Roda Viva, no Festival de Música Popular Brasileira, em 1967.
Chico tricolor, responde a provocação de Cyro Monteiro, com um samba bem humorado, em que "transforma" uma camisa do Flamengo em camisa do Fluminense.
Chico tricolor, responde a provocação de Cyro Monteiro, com um samba bem humorado, em que "transforma" uma camisa do Flamengo em camisa do Fluminense.
Releitura da contra-capa do disco Meus caros amigos. A imagem da sinuca remete à música "Vai trabalhar, vagabundo", mencionada no texto.
Releitura da contra-capa do disco Meus caros amigos. A imagem da sinuca remete à música "Vai trabalhar, vagabundo", mencionada no texto.
Releitura da capa do LP de 1978, quando a música "Apesar de você" foi liberada definitivamente.
Releitura da capa do LP de 1978, quando a música "Apesar de você" foi liberada definitivamente.
A música Vai Passar proclama o fim da ditadura e dias melhores.
A música Vai Passar proclama o fim da ditadura e dias melhores.
Terminando outro período de trevas na história política do país, Chico oferece um samba como um descarrego.
Terminando outro período de trevas na história política do país, Chico oferece um samba como um descarrego.

           

           

 
 
 

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