Noel Rosa e Wilson Batista: a polêmica da malandragem
- Roberta De Freitas
- 10 de ago. de 2022
- 7 min de leitura
Em 1934 se deu início a uma famosa disputa musical que dá o que falar até hoje. Quase 90 anos depois, a disputa já rendeu inúmeras apresentações e gravações. Entrou na memória afetiva da história do samba como a polêmica entre Noel Rosa e Wilson Batista, que aproveitou o embalo para ganhar evidência no início de sua carreira. Quando o jovem campista Wilson Batista chegou ao Rio de Janeiro, com cerca de vinte anos, ficou absolutamente deslumbrado com o ambiente da malandragem carioca no círculo social do samba. No final de 1933, uma composição sua, que exaltava escancaradamente o modo de vida do malandro, seria gravada por Silvio Caldas, uma das vozes mais requisitadas deste início da era de ouro do rádio. “Lenço no Pescoço”, de letra bem curtinha, dizia assim:
Meu chapéu de lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
De ser Vadio
Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserê
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Desde os tempos de criança
Tirava Samba-Canção
(continua depois das ilustrações)
Carlos Didier e João Máximo, biógrafos de Noel (“Noel Rosa:uma biografia", ver referências), definem assim o samba de Wilson Batista e a sua incursão pelo círculo da malandragem: “Um excelente samba de autoria, algo complicada, o selo do disco creditando-o a um tal de Mário Santoro, enquanto o pessoal da favela diz que um malandreco, ruço, cheio de tatuagens, comprou-o não se sabe de quem. Mas parece que o autor mesmo é outro malandreco Wilson Batista” (DIDIER, Carlos e MÁXIMO, João, 1990, p.291). A afirmação expõe a promiscuidade que rondava esse mercado paralelo de sambas, em que o nome dos verdadeiros autores ficava em segundo plano ou nem aparecia.
Mas o fato é que a malandragem carioca considerava Wilson Batista, um malandreco, coisa que um malandro respeitado da estirpe de Zé Pretinho definia como de menor importância: “treina, mas não joga”. E era notório que Wilson tinha mesmo orgulho de posar de malandro, num ritual de gestos cheios de ginga, pedindo emprestado aqui e ali dinheiro miúdo, e batalhando o pão de cada dia em pequenos serviços. Noel, por sua vez, um pouco mais velho, já era bem conhecido no meio musical e amigo de malandros valentes, contraventores temidos como Saturnino Baiaco, Brancura e Germano Augusto, adorava ouvir as histórias de “valentias, brigas, desforras, tiros, navalhadas e mortes” (Ibidem). O próprio Noel faria, antes e depois da polêmica, exaltando a malandragem e a figura do malandro. “A escola de Malandro” é um bom exemplo.
O que explicaria, então, essa reação de Noel, que teria resolvido responder o samba de Wilson? Estaria mesmo preocupado com a imagem negativa que atribuíam ao sambista por conta do envolvimento com a malandragem? Ou estava apenas se divertindo com a audácia do garoto campista, recém chegado de sua cidade natal? O fato é que se trata inequivocamente de uma divertida resposta à “Lenço no pescoço”. Vamos à letra de “Rapaz Folgado”:
Deixa de arrastar o seu tamanco
Pois tamanco nunca foi sandália
Tira do pescoço o lenço branco
Compra gravata e sapato
Joga fora essa navalha
Que te atrapalha
De chapéu de lado, deste rata
Da polícia quero que escape
Fazendo samba-canção
Já te dei papel e lápis
Arranje um amor e um violão
Malandro é palavra derrotista
Que só serve para tirar
Todo valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado
Se notarmos que a sua resposta, verso a verso a Lenço no pescoço, não desconsidera a malandragem em si, mas especificamente daquele que os verdadeiros malandros chamavam de “malandreco”. A hipótese de uma rixa pessoal ter inspirado a provocação ganha força, quando sabemos que Noel e Wilson já se conheciam de noitadas da Lapa, onde o segundo teria levado a melhor sobre o primeiro, na disputa do coração de uma morena.
Wilson Batista, no entanto, mostraria ser bem mais malandro do que Rapaz Folgado sugeria. Viu na provocação do já aclamado Noel Rosa como uma oportunidade batendo à sua porta para ficar famoso e deslanchar a sua carreira. Wilson logo atacou de “Mocinho da Vila”:
Você que é mocinho da Vila
Fala muito em violão
Barracão e outras coisas mais
Se não quiser perder o nome
Cuide do seu microfone E deixe quem é malandro em paz
Injusto é seu comentário
Fala de malandro
Quem é otário
Mas falando não se faz
Eu de lenço no pescoço
Desacato e também tenho meu cartaz.
Máximo e Didier encerram o episódio por aqui, afirmando que ninguém havia tomado conhecimento de Mocinho da Vila. Ele não teria sido gravado até 1956, com Roberto Paiva, limitando-se o autor a executá-lo apenas entre seus pares do meio artístico. Mas é curioso que eles não comentam que essa gravação é uma faixa do LP dedicado justamente à polêmica entre os autores, que complementam a disputa com outras músicas de Noel e Wilson. No disco, atribuem à famosa “Feitiço da Vila”, a resposta de Noel à “Mocinho da Vila”, mas a letra exaltando o bairro da Zona Norte onde Noel nascera e fora criado, não parece se tratar de uma resposta direta nem à Wilson, nem a ninguém. Quem nasce lá na Vila Nem sequer vacila Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos Do arvoredo e faz a Lua Nascer mais cedo Lá, em Vila Isabel Quem é bacharel Não tem medo de bamba São Paulo dá café Minas dá leite E a Vila Isabel dá samba A vila tem um feitiço sem farofa Sem vela e sem vintém Que nos faz bem Tendo nome de princesa Transformou o samba Num feitiço decente Que prende a gente O Sol da Vila é triste Samba não assiste Porque a gente implora Sol, pelo amor de Deus Não vem agora Que as morenas Vão logo embora Eu sei por onde passo Sei tudo o que faço Paixão não me aniquila Mas, tenho que dizer Modéstia à parte Meus senhores Eu sou da Vila! A zona mais tranquila É a nossa vila! O berço dos folgados Não há um cadeado no portão Pois, lá na vila, não há ladrão A Vila tem um feitiço sem farofa Sem vela e sem vintém Que nos faz bem Tendo nome de princesa Transformou o samba Num feitiço decente Que prende a genter à pla Se Feitiço da Vila foi mesmo composta em resposta à Mocinho da Vila, isso fica menos explícito do que nas outras. Mas “Conversa fiada” de Wilson, não deixa dúvidas de que seja uma resposta à “Feitiço da Vila”: É conversa fiada dizerem que o samba na Vila tem feitiço Eu fui ver para crer e não vi nada disso A Vila é tranqüila porém eu vos digo: cuidado! Antes de irem dormir dêm duas voltas no cadeado Eu fui à Vila ver o arvoredo se mexer E conhecer o berço dos folgados A lua essa noite demorou tanto Assassinaram o samba Veio daí o meu pranto E, Palpite Infeliz, outro estrondoso sucesso de Noel, é a resposta definitiva de Noel, à questão: Quem é você que não sabe o que diz Meu Deus do céu, que palpite infeliz Salve Estácio, Salgueiro e Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz Que sempre souberam muito bem Que a Vila não quer abafar ninguém Só quer mostrar que faz samba também Fazer poema lá na Vila é um brinquedo Ao som do samba dança até o arvoredo Eu já chamei você pra ver Você não viu porque não quis Quem é você que não sabe o que diz? A Vila é uma cidade independente Que tira samba mas não quer tirar patente Pra que ligar a quem não sabe Aonde tem o seu nariz? Quem é você que não sabe o que diz?
(continua depois da próxima ilustração)
Nos últimos versos, há implícita sugestão de que Noel encerrava ali a discussão: “Para que ligar a quem não sabe/ Aonde tem o seu nariz?”. Wilson ainda continuaria, sem sucesso, a continuar a disputa, com mais dois sambas melodicamente interessantes, mas muito fracos na argumentação. Frankstein da Vila apela para os atributos físicos de Noel, debochando de seu defeito de nascença no queixo: Boa impressão nunca se tem quando se conhece um certo alguém que até parece um Frankstein/ Mas como diz o refrão/ por uma cara feia, perde-se um bom coração/ Dentre os feios és o primeiro da fila/ Todos reconhecem lá na Vila/ Esta indireta é contigo / E depois não vá dizer que eu não sei o que digo/ Sou seu amigo”. Imagine se não fosse… A esta emendou com “Terra de cego”, que não esperou resposta da anterior: “Perde a mania de bamba/ Todos sabem qual é/ O teu diploma no samba/És o abafa da Vila, eu bem sei/Mas na terra de cego/Quem tem um olho é rei/ Pra não terminar a discussão/Não deves apelar/ Para um barulho na mão/ Em versos podes bem desabafar/ Pois não fica bonito/ Um bacharel brigar”. Quem conhece um milímetro do temperamento de Noel pode imaginar que Wilson Batista não teria mais respostas. Mais elegante que o oponente, e percebendo qualidades melódicas nessa última, propôs outra letra, agora direcionado a uma mulher, encerrando a disputa com uma parceria, que satisfazia os dois lados. Assim nasceu “Deixa de ser convencida”, endereçado, ao que parece, à dama que havia motivado a disputa entre os malandros: “Deixa de ser convencida/ Todos sabem qual é/ Seu velho modo de vida/ És uma perfeita artista, bem sei/ Também sou do trapézio/ Até salto mortal no Arame já dei/ E no picadeiro desta vida/ Serei o domador/ serás a fera vencida/ Conheço muito bem acrobacia/ Por isso não faço fé/ Em amor em amor de parceria (muita medalha eu ganhei)”. No disco de Francisco Egydio e Roberto Paiva, eles acrescentam à rixa, a música João Ninguém, composta por Noel tempos depois do samba da paz (Deixa de ser convencida) que o ilustrador Nássara atribui à rixa, em texto de apresentação no verso da capa de sua autoria. Anos depois, em fins da década de 90, Henrique Cazes e Cristina Buarque reeditaram a polêmica, em um projeto que resgatava vida e obra de Noel, com um disco e apresentações que tive o privilégio de assistir (procure pelo disco Sem Tostão, no Spotfy) e em 2012, os saudosos Monarco e Nelson Sargento também dedicaram à disputa uma série de apresentações que lamento muito ter perdido. Além das já mencionadas, Aracy de Almeida e Ismael também gravaram a polêmica na década de 1970.
Referências:
MÁXIMO, João e DIDIER, Carlos. "Noel Rosa: uma biografia". Brasília: Editora UnB, 1990. https://oglobo.globo.com/cultura/show-revive-famosa-polemica-entre-noel-rosa-wilson-batista-6046940
A polêmica no spotify:
Álbum "Sem tostão", de Henrique Cazes e Cristina Buarque: https://open.spotify.com/album/10EbTBQlyt4D4SISevSN6L (faixas 6,7 e 8 do disco 2).
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