Noitada de Samba
- Roberta De Freitas
- 11 de jan. de 2023
- 4 min de leitura
Era para ter se chamado Zicartola nº2, acontecia toda segunda-feira no Teatro Opinião. O Zicartola e o Show Opinião, no mesmo teatro, mais do que um bar e um espetáculo, se tornaram importantes movimentos artísticos de resistência cultural e política na história do Brasil. E como se não bastasse essa forte ligação com esses dois episódios da história cultural brasileira, a "Noitada de Samba" ainda deu impulso à carreira de nomes como João Nogueira, Beth Carvalho, Clara Nunes, Martinho da Vila, Roberto Ribeiro e Leci Brandão, que formaram o famoso Clube do Samba (criado e presidido pelo primeiro), uma experiência que iria de algum modo, dar continuidade ao que havia sido a famosa Noitada de Samba o que nos leva a concluir que desde pelo menos o Zicartola, o samba encontrou seu espaço de resistência no Rio de Janeiro através de uma sucessão de movimentos culturais com vínculos históricos entre eles. Além dos nomes que surgiram ou explodiram na Noitada, a velha guarda também marcou presença, legitimando, reforçando e prestigiando o espetáculo: o próprio Cartola, Clementina de Jesus, D. Ivone Lara, Nelson Cavaquinho, Candeia, Moreira da Silva e Elizeth Cardoso, entre outros.
Há uma gravação de Martinho da Vila da música "De qualquer maneira" de Candeia, que ele conta a seguinte história. Candeia havia sofrido "uma queda" (policial, candeia havia levado um tiro que o deixou paraplégico) e Martinho e amigos sabiam que um evento daqueles poderia animá-lo. Vencida a resistência inicial, conseguiram levar Candeia para a Noitada. Recebido com uma chuva de aplausos, a plateia foi ficando em silêncio e ouviu os primeiros acordes e versos...
De qualquer maneira, meu amor eu canto De qualquer maneira, meu encanto eu vou sambar De qualquer maneira, meu amor eu canto De qualquer maneira, meu encanto eu vou sambar
Com os olhos rasos d'água Ou com o sorriso na boca Com o peito cheio de mágoa Ou sendo a mágoa tão pouca Quem é bamba não bambeia Falo por convicção Enquanto houver samba na veia Empunharei meu violão
Sentado em trono de rei Ou aqui nessa cadeira Eu já disse eu já falei Que seja qual for a maneira Quem é bamba não babeia Falo por convicção Enquanto houver samba na veia Empunharei meu violão
Segundo Martinho, o público aplaudia e chorava de pé! (continua depois das ilustrações...)
Organizada pelos produtores Leonides Bayer e Jorge Coutinho, dois nomes ligados ao Centro Popular de Cultura da UNE, a Noitada durou de 1971 a 1983. Inspirado pela experiência do Zicartola ( saiba mais: https://ilustresamba.com/f/zicartola), Coutinho criou em 1970, o espetáculo "Cartola Convida", mesclando novas vozes e promessas da música brasileira, com nomes consagrados da velha guarda, que ocupou primeiro o Teatro do Conservatório, na Praia do Flamengo, seguido de uma série de apresentações na UNE.
Mesmo com poucos recursos e estrutura precária, não teve nenhuma edição que tenha sido deficitária. Mas a inauguração, no dia 01 de novembro de 1971, véspera de finados, correu sério risco de ser um fiasco, com o temporal que caiu sobre a cidade ao longo do dia. O ator Rafael Carvalho foi com Bayer em sua kombi, à Mangueira, buscar Cartola e Zica no final da tarde, para levá-lo ao Opinião em Copacabana. Chegando lá, encontraria Cartola de pijama, vendo televisão e decidido a ficar em casa: "Ah, Zica, não vai ninguém naquele teatro! Com essa chuva? Tá caindo um dilúvio! Eu não vou! Não adianta a gente ir lá!" Mas a Zica, que passara o dia na cozinha preparando a comida que iria levar pra vender no show, procurava convencer o marido. "Vamos lá, Cartola! Já tá tudo pronto!". _ "Então não leva comida! Ninguém vai comprar isso!" Acabaram indo e levando a comida. O silêncio da viagem só era quebrado por cartola que resmungava, mauhumorado;;;"Isso não vai dar certo..." Chegando à porta da galeria onde ficava o teatro em Copacabana, a chuva continuava e Cartola não queria sequer sair da Kombi. Mas novamente convencido pela Zica, subiram. O tempo passava e nada mudava. Nove horas, horário marcado para o início do espetáculo, nada. Nove e meia, a chuva passando, começava a chegar gente. Dez horas da noite, já não cabia mais ninguém no Teatro Opinião. Completamente lotado e o espetáculo "Zicartola", nº2 havia sido um sucesso.
No ano seguinte, o título sugerido pelo jornalista Sérgio Cabral para lembrar o saudoso Zicartola que funcionou na Rua da Carioca, quase dez anos antes, teve que ser alterado. A nova sede do Zicartola na mangueira teria que ter exclusividade. Decidido numa enquete entre os frequentadores, Noitada de Samba do teatro Opinião é que ficou pra história. Nesses dez anos ali se apresentou uma lista interminável de cantores e compositores da primeira linha da música popular brasileira, e o ambiente passou a ser frequentado por gravadoras e empresários, fazendo nascer novos álbuns e músicas.
Com o início da década de 1980, o aumento de crise econômica no país, a chama da Noitada foi se apagando aos poucos. No mesmo triste ano de 1983, quando o brasil perdeu o talento de Clara Nunes, a Noitada se encerrou definitivamente.
O livro "Noitada de Samba", com organização de Cély leal e texto de Márcia Guimarães traz episódios saborosíssimos envolvendo grandes nomes do samba, é fartamente ilustrado com as belíssimas fotografias de Manuel da Paixão Pìres, que inspiraram as ilustrações que fiz para esta postagem.
Playlist inspirado na Noitada.
Spotify: Ilustres Samba - Noitada.
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