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"Rio Zona Norte"...e o cinema cai no samba!

Quando se fala em samba no cinema, nossa memória nos leva diretamente às grandes comédias musicais da década de 1950, as chanchadas, primeiras expressões de grande popularidade do cinema nacional. O astro Grande Otelo formou com Oscarito a dupla que protagonizou os mais conhecidos clássicos do gênero, marcado também por nomes como Ankito, Zé Trindade e Dercy Gonçalves. Rio Zona Norte, no entanto, não é chanchada, nem tampouco comédia e, apesar de apresentar a história de um sambista, também não diria que pode ser considerado um musical, daqueles em que um diálogo banal acaba descambando pra um número musical e os personagens começam a dançar, sem propósito, no meio da rua. "Rio, Zona Norte", de Nelson Pereira dos Santos, escapa a todos esses estereótipos. Apesar de ser estrelado por um dos mais populares atores cômicos do país, na época, era um drama social que, tal como Rio 40 graus, do mesmo diretor, antecipa muitos dos preceitos que marcaria o Cinema Novo, movimento que ia marcar a história do cinema brasileiro, a partir da década de 1960.


As popularíssimas chanchadas da Atlântida seguiam o modelo das comédias musicais americanas, igualmente populares, narrativas mais dinâmicas, marcadas por reviravoltas e temperadas com humor e aventura. O Cinema Novo iria buscar na produção europeia, principalmente o neo-realismo italiano e a nouvelle vague francesa, novas referências para fugir dos modelos mais comerciais da indústria americana, e produzir filmes de caráter mais artísticos, focados na estética e na realidade social. É nesse sentido que Nelson Pereira dos Santos parece antecipar os preceitos do Cinema Novo, já desde sua empreitada anterior, com "Rio 40 graus", de 1955, a quem se atribui pioneirismo por mostrar pela primeira vez uma favela nas telas. O filme lançou também grandes sucessos de Zé Kéti, como a conhecidíssima "A Voz do morro" e "Leviana". "Rio, Zona Norte", por sua vez, inova ao apresentar um protagonista negro, e por escolher para o papel principal um ator marcado pela comédia. Grande Otelo (ou seria melhor dizer "gigante"?) dá um show à parte na pele do humilde sambista Espírito da Luz, que ganha a vida como biscate enquanto tenta emplacar seus sambas, que já faziam sucesso dentro de sua comunidade. Ao narrar a história de Espírito a partir da memória do personagem, quando após uma queda, ele agoniza nos trilhos do trem, entre a vida e a morte, Nelson Pereira prefere envolver o espectador pela emoção do que pela surpresa, já entregando o "spoiler" em seu colo logo na primeira cena do filme. "Rio, Zona Norte" denuncia as dificuldades e os desafios na trajetória de um sambista pobre, negro, sem instrução e favelado. Denuncia a vida precária, o trabalho árduo, a necessidade de vender seu samba, mesmo ao custo de apagar seu nome e perder o merecido reconhecimento. O papel do malandro golpista chamado Mauricio, cai como uma luva para Jece Valadão, personagem mais recorrente do ator. Entre os sambas de Zé Kéti, neste filme, temos logo de cara, "Mexi com ela", um samba sincopado delicioso, e as belíssimas "Dama de ouro" e "Mágoa de sambista", que ele canta num botequim da comunidade. Além dessas, creditada como "Fechou o paletó", a famosa "Malvadeza Durão", que é interpretada num momento especial do filme. E o próprio Zé Kéti faz uma rápida figuração, na cena em que Espírito aparece pela primeira vez na Rádio Nacional.

A ideia de apresentar releituras de cenas marcantes do filme, surgiu a partir de uma de minhas experiências, quando eu estava aprendendo xilogravura, no ano passado e resolvi reproduzir na técnica, a imagem do Grande Otelo que aparece no cartaz, batendo na caixinha de fósforo. Lançando mão da gravura resultante dessa experiência, propus uma nova versão do cartaz, inspirada no original. Mas para as cenas do filme, decidi fazer desenhos rápidos. Inicialmente fiz desenhos à lápis sépia bem escuro sobre papel amarelado. Mas senti que as imagens mereciam ser mais trabalhadas, e resolvi experimentar. Lancei mão de canetas brush, nanquim em tons de cinzas e beges,lápis de cor em tons quentes e terrosos, para evidenciar o caráter antigo do filme; pontuando alguns elementos com cores mais vibrantes (laranjas e amarelos), sobre papel vergé e canson creme. E resolvi repostar a versão final, atualizando esta postagem.


A escolha das cenas procurei privilegiar as mais relevantes e as referências ao samba. As primeiras mostram Espírito quando ele é descoberto na favela pelo malandro que quer lhe passar a perna, e pelo músico da rádio nacional, vivido por Paulo Goulart. Depois ele aparece cantando para a cantora Ângela Maria, interpretada por ela mesmo, em um dos grandes pontos de virada do filme, quando tudo parece que vai melhorar na vida dele, após uma sequência de revezes. É quando Espírito resolve apresentar sua nova composição (Malvadeza Durão, um samba hoje muito famoso de Zé Kéti) à cantora, no balcão da cafeteria da rádio, e ela entra com sua voz sublime nos últimos versos. No momento em que ela empresta a voz ao samba de Espírito, a câmera está focalizando a surpresa e emoção no rosto dele, e flagra o momento em que a expressão de espanto se transforma num largo sorriso. As lágrimas não lhe escorrem pelo rosto, mas os olhos brilham tanto que parecem cheios d´água. Por fim, mostro a cena que inicia e fecha o filme, com o corpo do sambista caído entre os trilhos do trem. Quando estava desenhando os trilhos em volta de seu corpo, logo me remeteu ao mesmo tempo à ideia de cruz e calvário. O desfecho trágico de um personagem destinado a representar a penúria e a "via crucis" do sambista, cuja genialidade é apagada pela realidade social e pela penúria, cantada em tantos sambas da história musical brasileira.


Em 2015, "Rio Zona Norte" entrou na lista de 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos, pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema.


O filme está disponível na íntegra, no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=DcGBL9PRvvs&t=4182s


Para quem quiser adquirir os desenhos, estão todos disponíveis na loja.



 
 
 

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