Samba e futebol
- Roberta De Freitas
- 19 de jul. de 2022
- 6 min de leitura





Samba e futebol criaram uma relação de amizade desde cedo. O futebol, que aportou por aqui um pouco antes de surgir o samba, já ganhou uma homenagem do choro, de ninguém menos que Pixinguinha, quando a seleção brasileira conquistou seu primeiro título, no torneio sul-americano de 1919, no recém inaugurado Estádio do Fluminense, com o gol da vitória marcado por Friedenreich, nos minutos finais da prorrogação de uma final contra o Uruguai. Sim, se você pensou no famoso chorinho "Um a zero", você acertou.
Há muitos grandes sambistas torcedores de todos os grandes clubes do Brasil. Aqui no Rio, temos, para começar, o rubro-negro Ary Barroso. Rubro-negro que começou tricolor e virou a casaca. Quando era locutor de rádio transmitia apaixonadamente os jogos do Flamengo. E o time vermelho e preto ainda pode ser escalado com Wilson Batista, Cyro Monteiro, João Nogueira, Jorge Ben e Moacyr Luz, entre outros. Para o time tricolor, temos Cartola, Chico Buarque, o maestro Tom Jobim (pra quem concorda que Bossa Nova é ou tem um quê de samba), Noca da Portela e Eduardo Gallotti. Já Beth Carvalho, Vinícius de Moraes, Zeca Pagodinho e Walter Alfaiate vestem o preto e branco da estrela solitária. Aldir Blanc, Paulinho da Viola, Martinho da Vila e a cantora Teresa Cristina, já preferem a faixa diagonal no peito e a cruz de malta. E para falarmos de futebol raiz, devemos lembrar também dos torcedores do América, como o portelense Monarco e Lamartine Babo, o rei das marchinhas, e autor dos hinos de todos os clubes do Rio. E podemos lembrar também, para a alegria dos botafoguenses, o casamento de Elza e Garrincha, no auge da carreira dos dois, que talvez seja o casamento mais simbólico entre o samba e o futebol brasileiro na história de ambos.
Quem tem pelo menos entre 45 e 50 anos, certamente se lembra da musiquinha "Na Cadência do samba", canção de Luis Bandeira, de 1956, posteriormente gravada em versão instrumental por Waldir Calmon e sua orquestra. Ficou mais conhecida pelos seus primeiros versos: "Que bonito é" que anunciava o Canal 100, um programa que apresentava reportagens cinematográficas de grandes clássicos do futebol brasileiro, sempre antes das sessões de cinema. Era a oportunidade de rever os lances dos jogos na telona. Ou para os torcedores do time que perdeu, uma oportunidade para ir ao banheiro ou comprar pipoca.
Mas há uma infinidade de sambas com referências ao futebol, algumas rápidas, outras inteiramente dedicadas a um time ou a uma perdida. Em "Conversa de botequim", Noel já pedia ao garçom para "perguntar a seu freguês do lado, qual foi o resultado do futebol". E em "Quem dá mais?", sugere que o Vasco desse ao seu jogador Russinho uma mulata, ao invés de barata (havia uma promoção da marca de cigarros "Veado", que premiava com um carro tipo "baratinha", o melhor jogador das competições, por voto popular). E no samba "Nega manhosa", já na década de 1950, Herivelto Martins dá o toque: "Deixei embaixo do rádio uma nota de cinquenta, Vai a fera, joga no bicho, vê se te aguenta/ Economiza, olha o dia de amanhã/ Eu preciso do troco/ Domingo tem jogo/ No Maracanã". Na mesma época, o "Samba Rubro-negro" de Wilson Batista mencionava que ”O mais querido/ Tem Rubens, Dequinha e Pavão". João Nogueira, trinta anos depois, adaptou o mesmo samba para "Zico, Adílio e Adão". Wilson Batista tem outro , "E o juiz apitou", em que lamenta uma derrota do seu rubro-negro: "O Flamengo perdeu/ Pro Botafogo/ Amanhã vou trabalhar/ Meu patrão é Vascaíno/ E de mim vai zombar." Foram noventa minutos/ Que eu sofri como louco/ Até ficar rouco/ Nandinho passa a Zizinho/ Zizinho serve a Pirilo/ Que preparou pra chutar/ Aí o juiz apitou/ O tempo regulamentar/ Que azar!".
A referência que o vascaíno Aldir Blanc faz ao Vasco, creio que os vascaínos não devem cantar com orgulho. Em “Gol anulado” ele reclama da mulher ter gritado “Mengo” no segundo gol do Zico e ainda admite ter cometido uma atitude não mais tolerada hoje em dia: “tirei sem pensar o cinto/ E bati até cansar” na esposa que ele chamava de rainha, que não foge ao batente, “se garante na cozinha e ainda é Vasco doente”, comparando, enfim, a desilusão amorosa à falsa euforia de um gol anulado. Se a letra é do vascaíno Aldir, a música é do rubro-negro João Bosco, seu mais fiel parceiro. Já em "Dias de azar", João Nogueira sente o mau presságio com a sorte de seu rubro-negro, em um jogo que ainda estava pra acontecer. Como bom tricolor, trago aqui uma ilustração inspirada em uma "foto Fla-Flu", dele com Cartola, como se ele já tivesse arrumando uma desculpa pra derrota... Ao menos, "ouvi dizer" que foi essa música que ele cantava para o amigo tricolor, nessa foto.
E falando em Fla-Flu, temos o clássico "ilustríssimo sr. Cyro Monteiro" ou..."Receita pra virar casaca de neném", de ninguém menos que Chico Buarque. Tudo começou quando Cyro mandou uma camisa de bebê do Flamengo para Silvia, hoje atriz, primeira filha do tricolor Chico Buarque. O presente mereceu uma resposta deliciosa, com toda a fidalguia de nosso ilustre tricolor, que agradece o regalo, mas faz as devidas ressalvas..."amigo Cyro, Muito te admiro, Meu chapéu te tiro/ Muito humildemente/ Minha petiz agradece a camisa/ Que lhe deste à guisa de gentil presente/ Mas caro nego, um pano rubro negro/ É presente de grego/ Não de um bom irmão/ Nós separados nas arquibancadas/ Temos sido tão chegados na desolação. Amigo velho/ Amei o teu conselho/ Amei o teu vermelho/ Que é de tanto ardor/ Mas quis o verde que te quero verde/ É bom pra quem vai ter que ser bom sofredor/ Pintei de branco teu preto/ Ficando completo/ O jogo de cor/ Virei-lhe listrado do peito/ E nasceu desse jeito/ Uma outra tricolor" Para que os amigos rubro-negros não briguem comigo, lembro também a música Fio Maravilha, de Jorge Ben, sucesso absoluto nas arquibancadas do Maracanã, que eu ainda ouvi ecoar por aquele estádio lotado, muitos anos depois que o Fio pendurou as chuteiras. Inclusive, adaptadas para homenagear craques de outros clubes. E Jorge Ben ainda tem uma outra com um tal de camisa 10 da Gávea, clara homenagem a Zico, no início de sua brilhante carreira. Sem contar “País tropical”, com os versos “Sou Flamengo e tenho uma nega chamada Teresa”.
Há também uma infinidade de sambas e marchinhas que, ao longo dos anos, foram apropriados pelas torcidas. Podemos buscar "Touradas em Madrid", com gravações na década de 1930, com Carmem Miranda e o Bando da Lua, e cantada no maracanã, na goleada por seis a um, do Brasil sobre a Espanha, na Copa de 50. Duas do Salgueiro são cantadas até hoje. "Festa para um rei negro" (Olelê, Olalá, pega no ganzê, pega no ganzá), de 1971, e Explode Coração (Peguei um Ita no Norte), de 1993. Da União da Ilha, também lembramos de duas, "É hoje", de 1982, (Será que eu serei o dono dessa festa...") e "Festa Profana", ("Eu vou tomar um porre de felicidade") de 1989.
Mas quanto aos sambas-enredo homenageando times de futebol? O único que empolgou um pouco mais foi em homenagem ao centenário do Flamengo, quando em 1995, a Estácio de Sá entrou na avenida com o "Uma vez Flamengo". Em 2003, a homenagem ao centenário do Fluminense, no ano anterior, veio da Acadêmicos da Rocinha. Em 1998, a Unidos da Tijuca, que tinha como patrono, o polêmico Eurico Miranda, presidente do cruzmaltino, homenageou o Vasco da Gama. No entanto, no Rio nunca teve uma ligação mais explícita entre time de futebol e escolas de samba, como acontece em São Paulo, com a Gaviões da Fiel e a Mancha Verde. Sinceramente, eu prefiro assim.
Claro que há muito pra falar dessa relação antiga entre samba e futebol, dá pra fazer vários recortes e o tema ainda vai merecer novas postagens. Essa relação não termina hoje e pra provar isso, lembro o mais recente sucesso de Chico Buarque, "Que tal um samba?", que não é sobre futebol, como outras do autor, mas o menciona: Que tal " Fazer um gol de bicicleta/ Dar de goleada..."?
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